A PSICOLOGIA EM DEFESA DA DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
Ramiro Figueiredo Catelan
Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Devaneio Excessivo e Desregulação Emocional (NUPDE2/LABPR/IPUB/UFRJ). Doutor em Psicologia. Psicólogo e supervisor clínico (CRP 07/26017). Terapeuta certificado e membro do grupo de doutores da FBTC. Pesquisador do International Consortium for Maladaptive Daydreaming Research (ICMDR). Diretor de Diversidade, Equidade e Inclusão da International Society for Maladaptive Daydreaming (ISMD). Integrante da World Professional Association for Transgender Health (WPATH). Coordenador da Formação em Terapia Afirmativa para Minorias Sexuais e de Gênero da Sínteses – Psicologia, Psiquiatria e Ensino.
Em 28 de junho de 1969, o público frequentador do bar Stonewall Inn em Nova Iorque, nos Estados Unidos, insurgiu-se contra a polícia, que promovia uma das frequentes “batidas” no local, consonante com a intensa política de repressão à diversidade sexual e de gênero vigente à época. Um dos principais redutos da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) estadunidense, o Stonewall Inn viu-se transmutado de local de socialização a um palco de violência, com a qual as pessoas ali presentes sinalizaram ao mundo: basta de perseguição, estigmatização e discriminação contra minorias sexuais e de gênero.
A Revolta de Stonewall, como hoje é conhecida, reverberou por inúmeros cantos do mundo, fazendo rodar com potência as engrenagens pré-existentes de movimentos sociais e políticos em defesa dos direitos da população LGBT. Isso certamente teve impacto sobre a Psicologia, que infelizmente por décadas contribuiu para a criação de rótulos, regramentos e estereótipos em relação à diversidade sexual e de gênero. Após a despatologização da homossexualidade pela American Psychiatric Association em 1973, aos poucos começaram a surgir, dentro e fora do âmbito acadêmico, linhas alternativas de estudos e práticas que confrontaram grupos de profissionais que tentavam, sem sucesso, reparar ou “curar” a sexualidade de pessoas que se relacionavam com outras do mesmo gênero.
Ainda hoje, a despeito da existência de legislações que proíbem que profissionais da Psicologia no Brasil realizem “cura gay” ou “correção” de pessoas transgênero, esse tipo de conduta segue sendo levada a cabo. Um recente estudo brasileiro apontou que 29,48% das(os) psicólogas(os) participantes relataram realizar atitudes corretivas de sexualidade quando isso era solicitado por pacientes, e 12,43% quando isso não era explicitamente solicitado1. Um relatório publicado pela American Psychological Association2 demonstrou que esse tipo de prática é inefetiva, ou seja, não alcança os resultados almejados. Mais do que isso, pode causar prejuízos às pessoas, tendo sido reportados níveis elevados de depressão, ansiedade, ideação suicida e disfunção sexual entre sobreviventes de intervenções com função corretiva de sexualidade. O entendimento científico é de que as orientações não-heterossexuais e as transgeneridades não se caracterizam como doenças, mas sim variações normais do espectro do gênero e da sexualidade3. Não é uma questão de simples opinião pessoal, mas de evidências a partir das quais profissionais da Psicologia devem sustentar seu trabalho.
Poderíamos levantar um ponto adicional: é ético promover esse tipo de ação? Mesmo que atitudes corretivas apresentassem efetividade e não colocassem as pessoas em perigo, será que é papel da Psicologia promover a normatividade, regulação e policiamento da diversidade sexual e de gênero? Será que nós devemos dizer às pessoas como devem expressar seu gênero e sexualidade? De acordo com quais critérios? Com base no quê?
A literatura científica tem documentado agravos e prejuízos de saúde mental entre indivíduos LGBT há pelo menos 20 anos, dispondo atualmente de vasto corpo de evidências que demonstram que a exposição sistemática a preconceito, discriminação e violência contribui para diversos problemas em minorias sexuais e de gênero, como ideação suicida4, depressão5, ansiedade6, transtorno por uso de álcool7 e uso excessivo de outras substâncias8. Os níveis de assassinatos da população transgênero no Brasil são considerados os mais altos do mundo, com uma média de 118,2 assassinatos/ano entre 2008 e 20199. Pessoas LGBT ainda enfrentam barreiras no acesso à saúde10, altos indicadores de infecções sexualmente transmissíveis11, desemprego12 e rejeição familiar13.
A Psicologia vem produzindo, nos últimos anos, modelos teóricos e ferramentas técnicas que podem ajudar a melhorar a qualidade de vida da população LGBT e contribuir para que recebam serviços psicológicos em que haja mais respeito e empatia, de modo a contrapor um histórico de patologização e produção de estigma. Defender a diversidade sexual e de gênero não é equivalente a abraçar uma causa partidária, como algumas pessoas dizem. O compromisso com a pluralidade de pensamento e a valorização das inúmeras maneiras de ser e estar no mundo é uma questão ética.
A vida é plural, diversa, múltipla, abundante e multifacetada. Logo, a diferença e a diversidade humana precisam ser reconhecidas, afirmadas, validadas e reforçadas. Pessoas que têm características divergentes das nossas não deveriam ser consideradas ameaças, mas caminhos para a interface com a alteridade. É possível crescer a partir do exercício de convívio com a diferença. E a Psicologia pode ajudar com isso a partir do desenvolvimento de intervenções psicológicas afirmativas, sustentadas por evidências e culturalmente adequadas para reconhecer e validar as necessidades únicas de minorias sexuais e de gênero.
Ferramentas psicoterápicas afirmativas podem ajudar a reduzir os efeitos deletérios do estigma, minimizar a experiência de sofrimento, ressaltar e potencializar a resiliência, fortalecer redes de apoio, aumentar a assertividade e otimizar o funcionamento psicológico. É possível ajudar pessoas LGBT a superarem a desesperança, reinventarem suas histórias e construírem uma trajetória que vale a pena ser vivida, de acordo com seus interesses, prioridades e valores. A vida pode fazer muito mais sentido quando pintada com múltiplas cores.
Referências
1 – Vezzosi, J. Í. P., Ramos, M. D. M., Segundo, D. S. D. A., & Costa, A. B. (2020). Crenças e atitudes corretivas de profissionais de psicologia sobre a homossexualidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 39.
2 – American Psychological Association. (2009). Report of the American Psychological Association’s Task Force on Appropriate Therapeutic Responses to Sexual Orientation. Washington, DC: American Psychological Association.
3 – Drescher, J. (2015). Out of DSM: Depathologizing homosexuality. Behavioral sciences, 5(4), 565-575.
4 – Costa, A. B., Pasley, A., Machado, W. D. L., Alvarado, E., Dutra-Thomé, L., & Koller, S. H. (2017). The experience of sexual stigma and the increased risk of attempted suicide in young Brazilian people from low socioeconomic group. Frontiers in psychology, 8, 192.
5 – Kulick, A., Wernick, L. J., Woodford, M. R., & Renn, K. (2017). Heterosexism, depression, and campus engagement among LGBTQ college students: Intersectional differences and opportunities for healing. Journal of homosexuality, 64(8), 1125-1141.
6 – Björkenstam, C., Björkenstam, E., Andersson, G., Cochran, S., & Kosidou, K. (2017). Anxiety and depression among sexual minority women and men in Sweden: is the risk equally spread within the sexual minority population?. The journal of sexual medicine, 14(3), 396-403.
7 – Slater, M. E., Godette, D., Huang, B., Ruan, W. J., & Kerridge, B. T. (2017). Sexual orientation-based discrimination, excessive alcohol use, and substance use disorders among sexual minority adults. LGBT health, 4(5), 337-344.
8 – Dyar, C., Newcomb, M. E., & Mustanski, B. (2019). Longitudinal associations between minority stressors and substance use among sexual and gender minority individuals. Drug and alcohol dependence, 201, 205-211.
9 – Transgender Europe. (2019). Trans Murder Monitoring Project. Berlin: TGEU.
10 – Costa, A. B., da Rosa Filho, H. T., Pase, P. F., Fontanari, A. M. V., Catelan, R. F., Mueller, A., … Koller, S. H. (2016). Healthcare Needs of and Access Barriers for Brazilian Transgender and Gender Diverse People. Journal of Immigrant and Minority Health, 20(1), 115–123.
11 – Costa, A. B., Fontanari, A. M. V., Jacinto, M. M., da Silva, D. C., Lorencetti, E. K., da Rosa Filho, H. T., … Lobato, M. I. R. (2014). Population-Based HIV Prevalence and Associated Factors in Male-to-Female Transsexuals from Southern Brazil. Archives of Sexual Behavior, 44(2), 521–524.
12 – Costa, A. B., Brum, G. M., Zoltowski, A. P. C., Dutra-Thomé, L., Lobato, M. I. R., Nardi, H. C., & Koller, S. H. Experiences of discrimination and inclusion of Brazilian transgender people in the labor market. Psicologia: Organizações & Trabalho, 20(2), 601-607.
13 – Feinstein, B. A., Wadsworth, L. P., Davila, J., & Goldfried, M. R. (2014). Do parental acceptance and family support moderate associations between dimensions of minority stress and depressive symptoms among lesbians and gay men? Professional Psychology: Research and Practice, 45(4), 239-246.