O último século foi marcado por uma série de avanços em relação ao direito das mulheres. Entretanto, a ocorrência de violência de todos os tipos continua a ser uma realidade na vida de mulheres e meninas em todas as partes do mundo. A lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340), vigente no Brasil desde 2006, classifica violência contra a mulher de forma ampla.
De acordo com o texto da lei, são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018); III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Apesar de representar um avanço considerável na proteção à mulher, sua real implementação ainda esbarra em inúmeros entraves operacionais e socioculturais.
O gênero é um dos principais marcadores sociais que constroem a subjetividade e é culturalmente moldado pelos significados e representações associados às características anatômicas sexuais de um indivíduo desde o nascimento. Apesar de a visão biopsicossocial do ser humano compreender o indivíduo enquanto parte, e também produto, de seu meio social, diversas instâncias da prática psicológica ainda resistem em considerar o marcador social de gênero enquanto elemento relevante em suas conceitualizações. Paralelamente, movimentos sociais visando à promoção da igualdade de gênero frequentemente enfrentam resistência, e ainda se encontram distantes de se refletir na prática psicológica, desde o consultório até a orientação de políticas públicas.
A psicologia, enquanto ciência e profissão, se constrói inexoravelmente como parte deste contexto social que vulnerabiliza as mulheres aos diversos tipos de violência. Nesse sentido, tanto a literatura científica quanto os posicionamentos institucionais sobre a prática psicológica em todo o mundo são enfáticos em apontar a violência de gênero enquanto um fenômeno psicossocial , bem como a importância de uma atuação preventiva em todas as instâncias da atuação do psicólogo(a).
Ao considerarmos que tanto a prática psicológica quanto a própria ciência são produzidas por pessoas, que por sua vez constroem sua subjetividade, visão de mundo e valores dentro de um contexto social, fica fácil compreender como tais estruturas influenciam o fazer psicológico. O psicoterapeuta, a supervisora, o professor, a psicóloga da escola, do hospital , da empresa etc, em última instância, se constituiu enquanto indivíduo e enquanto profissional imersos em uma cultura que perpetua crenças distorcidas relacionadas a gênero que legitimam a violência.É assim que, mesmo inadvertidamente, a psicologia pode ser um meio de perpetuação destas estruturas opressoras.
Em um estudo recente de revisão conduzido por mim e pelas colegas Claudia Guilger, Stephanie Zakhour e Carmem Beatriz Neufeld, observamos como o marcador de gênero vem sendo negligenciado na discussão de dados de saúde mental das mulheres na ciência produzida em Terapias Cognitivo Comportamentais na América Latina, mesmo em temas historicamente relacionados à condição social feminina, como transtornos relacionados à autoimagem corporal e gestação, por exemplo. Além disso, temáticas de gênero raramente são tratadas ao longo da formação profissional. Na clínica, é comum encontrarmos teorias psicológicas construídas dentro de um paradigma sexista. Da mesma forma, crenças misóginas estão na base da cultura de diversas organizações em que o psicólogo se insere. Precisamos, urgentemente, compreender que gênero não é assunto apenas da Psicologia Social, mas de todos nós.
Nesse sentido, o dia de hoje nos convida a um exercício de autorreflexão: quais são minhas crenças pessoais sobre gênero e como estas podem influenciar minha prática cotidiana e me tornar parte desse processo social de opressão e violência contra meninas e mulheres? Regule suas emoções negativas ao ler essa frase, observe seus pensamentos automáticos e persista no exercício. Somos todos parte disso.
Como as nossas crenças sobre o que é um comportamento adequado e desejável refletem padrões historicamente associados ao masculino, como problematizamos a mulher que decidiu não ter filhos, ou não se dedicar a eles, como individualizamos as questões de violência familiar, patologizando o autor, a vítima ou o vínculo, como tratamos queixas de desejo sexual que encobrem situações de estupro/coerção sexual nos relacionamentos, como sutil ou abertamente deixamos de defender a autonomia e os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, como entendemos que a vítima, de alguma forma, possa ter contribuído para a violência sofrida, como desconsideramos questões de gênero na clínica de casais ou nas queixas de estresse, ansiedade, burnout ou depressão, como ratificamos padrões rígidos de alimentação, cuidados com o corpo e exercícios físicos para as mulheres sob o pretexto de estarmos contribuindo para o cuidado com a saúde. Enfim…
Os exemplos são inúmeros, e sutis. E exatamente por isso precisamos refinar nosso olhar para enxergá-los. Só assim poderemos efetivamente contribuir para a construção de um ambiente mais justo e menos violento para meninas e mulheres, desde a escola, passando pelos serviços de saúde, os locais de trabalho, os consultórios de psicoterapia e as políticas públicas. Sejamos cada vez mais agentes dessa mudança ao invés de cúmplices da violência.
Para saber mais: American Psychological Association, Girls and Women Guidelines Group. (2018). APA guidelines for psychological practice with girls and women. Retrieved from http://www.apa.org/about/policy/psychological-practice-girls-women.pdf