Este texto teve início no dia em que acordei com um convite desafiador de um profissional amigo que muito admiro, para contribuir com uma reflexão sobre o racismo, fosse em forma de um texto ou de uma live, cuja questão é tão presente em nosso cotidiano, e nos atravessa diariamente nos mais variados ambientes, práticas e interações sociais. O desafio foi aceito em duplicidade por me provocar um movimento na contramão do lugar de conforto que repousamos nossa prática. A habituação que nos circunda nos conduz a um lugar comum de que “as coisas são do jeito que são”, numa posição dogmática que nos acomoda o olhar e as atitudes, reiterando comportamentos de sofrer e calar, ou negar sua existência.
Questão estrutural que nos assola a cultura e que está enraizado e “naturalizado” em nossas crenças desde logo cedo, causando-nos uma “cegueira conveniente”. Nesse momento em que o mundo se rebela sob a expressão de vários movimentos de “basta” em alguns lugares do mundo e aqui no Brasil, vemos uma ebulição de fatos sendo (d)enunciados, inquietando e incomodando a ordem social “naturalizada”. Pensar num Brasil em crise, ou melhor, em várias crises, é pensar num Brasil multirracial que já não se conforma com a posição dogmática que nos foi doutrinada.
Da perspectiva de minha trajetória de vida, pessoal e profissional, poderia elencar diversos momentos de um ser, estar e fazer perpassado por pequenos, hostis e sutis gestos e limitações que me foram constituindo no que hoje sou. Ser uma psicoterapeuta e professora universitária “bem-sucedida”, galgar espaços antes inalcançáveis e reservados para poucos (e brancos), é um desafio constante que encontra resistência nas interações intra, extra ou intergrupo.
Fazer valer uma identidade pautada na conquista “por mérito” de muitas aquisições e titulações, tem sua validação em momentos de reafirmação pessoal e quebra de paradigmas funcionais que nos servem de guias “invisíveis” em nossa sociedade. O que vestir, com quem se relacionar, onde morar, o que fazer, o que dizer, o que sonhar, tudo necessariamente passa por crivos limitantes que convidam ao
enfrentamento para superação e transcendência dos desafios postos.
Venho de uma família de classe média baixa, constituída por provocação não político-ideológica de um pai negro e uma mãe branca, cujas raízes genealógicas me conduzem fatalmente à miscigenação das culturas africana e portuguesa. Nesse cenário de múltiplas riquezas e ensinamentos, fui me personificando e galgando conquistas “por mérito” que me garantiram uma formação pública e gratuita de qualidade, sem a qual certamente não estaria vos falando desse lugar “privilegiado”.
Bem, quando hoje me deparo no meio acadêmico com a polêmica discussão sobre o (des)valor das cotas e do mérito, paro e reflito o quanto dessa política de “portas forçosamente abertas” contribui para mudar o cenário de desigualdade de oportunidades em nosso país. E aqui, trago uma célebre ideia do tão aclamado professor português, Boaventura de Souza Santos, no sentido dialético de que se há uma diferença que inferioriza as pessoas, elas têm o direito a igualdade e se há uma descaracterização pela igualdade as pessoas têm direito a se diferenciarem. Assim, percebo que sou tomada por certa empatia e satisfação ao adentrar uma sala de aula no cotidiano acadêmico e me deparar com fisionomias negras e pardas, construindo um novo cenário educacional e profissional.
E a consciência de um leito de desigualdades estruturais que nasce desse contraste, revela outras nuances de nossa realidade sociocultural que mantêm e retroalimentam as práticas discriminatórias raciais explícitas ou não. No entanto, o que mais nos convoca à reflexão e revisão de práticas em nosso fazer clínico são as sombras
e os fantasmas que acompanham esses seres humanos e cidadãos que, independentemente dos méritos e conquistas materiais que alcancem, continuam a portar correntes sociais “invisíveis” que promovem desafios psíquicos que, muitas vezes, os encerram em ciclos viciosos de auto e heterojulgamento sócio-psíquicoemocional que limitam seu viver em liberdade e plenitude.
Exatamente aí, nesses cenários, o fazer clínico e, mais especificamente, cognitivo-comportamental, com seu modus operandi de intervenção, pode ser praticado com eficiência para se atuar de uma forma construtiva e libertadora, visando “desmascarar esses fantasmas” e “desnudar essas sombras” para revelar e validar a verdade que existe por baixo de uma prática de racismo velado e estrutural que nos assola no Brasil.
Quando o psicólogo se disponibiliza a acolher, validar o sofrimento e convidar à superação dos limites internos e socioestruturais nesse contexto, atua de modo proativo embasado na teoria e utilizando instrumentais facilitadores que otimizam o processo de (re)descoberta de si, do outro e do mundo.
Essa reflexão me conduz inevitavelmente a um universo teórico tão humano e integrativo que se expressa na teoria social cognitiva desenvolvida por Albert Bandura (2008), através dos processos de modelação social e simbólica que se delineiam de modo recíproco entre pessoa-ambiente-comportamento. Caminhar por essa estrada teórica nos oportuniza conduzir nossa prática clínica a pensar em um ser humano intencionalmente agêntico e proativo, capaz de atuar de modo individual ou coletivo em busca da superação dos limites de seu ambiente imposto (cultura, classe social, estrutura familiar), seja selecionando ambientes, seja primordialmente criando novos ambientes.
Um convite promissor e desafiador que, empaticamente, toca-nos e provoca-nos a uma prática alicerçada na esperança de um fazer mais integrador e de um viver mais facilitador de experiências humanamente frutíferas e amistosas.
Sobre a Autora:
Suely Santana
CRP – 02/8340
• Membro da Diretoria da FBTC
• Psicóloga Clínica
• Terapeuta Certificada pela FBTC
• Drª em Psicologia pela FPCEUP-PT
• Profª do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da UNICAP, membro do Laboratório de Família, Interação Social e Saúde
• Profª do Curso de Psicologia e Supervisora de Estágio em Terapia Cognitivo-Comportamental da UNICAP