Aline Sardinha
Núcleo de Disfunções Sexuais (NUDS/IPUB/UFRJ), Terapeuta Cognitiva Certificada pela FBTC, Vice-presidente da FBTC e Coordenadora do Curso de Formação à distância em Terapia Cognitiva Sexual.
Hoje o mundo celebra o dia 17 de maio de 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID), contribuindo para o movimento de despatologização destas sexualidades, ainda em curso. Desde então, a data virou símbolo da luta por direitos humanos e pela diversidade sexual. A edição mais atual da CID, proposta em 2019, removeu também o diagnóstico relacionado à identidade de gênero do capítulo de transtornos mentais, alocando-o na seção de condições relacionadas à saúde sexual. A manutenção das experiências trans na CID se justifica no sentido apenas de garantir o acesso aos serviços de saúde, especialmente às diversas condutas médicas e paramédicas relacionadas ao processo transexualizador.
Originalmente conhecido como Dia Internacional contra a Homofobia, atualmente vem sendo rebatizado, de modo a incluir a Transfobia, a Bifobia e outras formas de preconceito e violência em relação às pessoas LGBTQI+. O Brasil, em especial, apresenta números alarmantes de violações dos direitos humanos dessa população. De acordo com dados de observatórios internacionais, somos consistentemente apontados como o país onde mais se mata pessoas da diversidade sexual e de gênero no mundo. Além disso, diversos tipos de violência contra essas pessoas ocorrem a cada dia em nosso país, deixando marcas que nós, como profissionais de psicologia comprometidos por princípio ético com o bem-estar social, não podemos negligenciar. Nesse sentido, convido hoje aos psicólogos e demais profissionais de saúde a refletirem sobre alguns aspectos a seguir.
De forma geral, gênero é uma categoria sociocultural referente à atribuição de papeis, expectativas e comportamentos às pessoas com base em suas características biológicas inatas, por assim dizer, o sexo “biológico”, designado ao nascimento. É um conceito heterogêneo e alvo de disputas políticas e científicas variadas, a partir de que emergem repercussões na forma como as relações sociais são estabelecidas, organizadas, hierarquizadas e conduzidas. É importante salientar que em quase todas as sociedades contemporâneas, gênero é compreendido a partir de uma matriz cultural binária: masculino ou feminino. Grande parte da população apresenta uma identidade de gênero compatível com o sexo que lhes foi designado no nascimento (cisgênero). Outras pessoas percebem sua identidade de gênero como distinta do sexo que lhes foi designado, sendo nomeadas pessoas trans (ou transgênero). A maior parte das pessoas trans apresenta uma identidade de gênero alicerçada nessas categorias binária, embora nem todas, sendo estas conhecidas como pessoas não-binárias.
A sexualidade, por sua vez, pode ser compreendida como um conjunto de atitudes, desejos e tendências relacionadas à experiência romântica e/ou sexual, descrevendo geralmente uma série de comportamentos e identidades assumidas pelos indivíduos nos seus contatos interpessoais. Um dos aspectos centrais da sexualidade é a orientação sexual, que indica por quais gêneros uma pessoa experimenta atração física, romântica e/ou emocional, para onde o desejo se direciona. Heterossexual é a pessoa que se atrai por alguém do gênero oposto. Homossexual é a pessoa que se atrai por alguém do mesmo gênero. Bissexual é a pessoa que se atrai por ambos os gêneros. É importante salientar que a variedade terminológica se refere a disputas entre os diversos movimentos sociais políticos e as comunidades científicas. Entretanto, conhecer as diferenças conceituais e o contexto em que são produzidas pode auxiliar na condução de práticas clínicas mais adequadas e sensíveis às necessidades da população-alvo.
A concepção tradicional de gênero traz em si uma matriz binária cujo argumento subjacente é a cisheteronormatividade do desenvolvimento e da expressão psicossexual. Além disso, é comum encontrar confusão entre os conceitos de identidade de gênero, expressão de gênero e orientação sexual tanto na população leiga, quanto em profissionais de saúde e psicologia. Nesse sentido, somos levados a acreditar que as pessoas nasceram homens/mulheres e devem, portanto, se comportar conforme seu gênero, adotando comportamentos, posturas e vestimentas tipicamente associadas ao masculino ou feminino, e necessariamente sentindo atração sexual por pessoas do gênero oposto, sob risco de sofrerem punições sociais.
Um referencial teórico que nos ajuda a pensar de forma mais efetiva o problema é o modelo do estresse de minorias, proposto por Meyer em 1995. Esta teoria vem sendo testada, revista e ampliada nos últimos anos, ganhando substancial respaldo empírico. A principal contribuição é a ideia de que determinados grupos sociais (minorias) tendem a estar sistemática e cronicamente expostos a situações de discriminação e violência. A simples pertinência a alguma destas categorias aumentaria em muito a probabilidade de o indivíduo passar por tais situações nas suas vivências interpessoais, institucionais e sociais. Um ponto importante deste modelo é ainda a ideia de que cada grupo possivelmente vivenciaria estressores específicos relacionados àquela categoria, derivados da distância entre suas características e os padrões normativos majoritários.
Assim, é importante compreendermos a cisheteronormatividade como um mecanismo estrutural de opressão, construído e arraigado em todas as instâncias do tecido social. As soluções para a violência e o preconceito sofrido por pessoas em não-conformidade com tais normas precisa passar, portanto, necessariamente, por mudanças na estrutura social vigente, sendo comprovadamente ineficazes as abordagens centradas no indivíduo e no caso isolado. Do ponto de vista da saúde mental, o termo homofobia (transfobia, bifobia etc) é impreciso. Do nosso lugar de fala, podemos contribuir considerando que as fobias são reações automáticas, patológicas, individuais e passíveis de tratamento. Ao entendermos o preconceito e a violência perpetrada contra as pessoas da diversidade sexual e de gênero enquanto uma fobia, ou pior, uma opinião válida, é possível que tendamos a centrar o problema no indivíduo “homofóbico” ou mesmo validar sua “liberdade de expressão”.
O entendimento dos balizadores cisheteronormativos estruturais em nossa sociedade permite compreender como cada um de nós é, ao mesmo tempo, afetado e agente de manutenção desse processo sociocultural que produz violência. Tais nuances, muitas vezes esquecidas, são o que efetivamente sustenta, provoca e mantém a estrutura opressiva que mata e violenta essas pessoas todos os dias. Enquanto cidadãos e profissionais de saúde, somos todos parte do problema.
Uma consequência indireta disso é o despreparo que a maioria dos profissionais da saúde apresenta no manejo clínico de pessoas e a consequente reprodução da violência nos settings de saúde onde o indivíduo busca cuidado e acolhimento. Ao longo dos anos, inclusive, a Psicologia, enquanto ciência e prática, contribuiu para criar teorias e intervenções que rotulam, estigmatizam e produzem violência contra pessoas da comunidade LGBTQI+. Profissionais da Psicologia prescreveram normas e papéis sexuais e de gênero, reforçaram categorias binárias e dicotômicas e contribuíram para formar estereótipos não correspondentes à diversa experiência humana em relação à gênero e sexualidade.
Mais recentemente, vemos esforços tanto do Conselho Federal de Psicologia do Brasil, quanto de organizações institucionais, como a Associação Psicológica Americana, no sentido de produzir normas e diretrizes técnicas para a capacitação e a atuação profissional sensível às necessidades das pessoas LGBTQI+. Contudo, o déficit na formação profissional, aliado à cisheteronormatividade vigente no contexto social, muitas vezes inviabilizam ainda que inadvertidamente, as possibilidades de atuação adequada às necessidades desta população. Apesar de nosso código de ética nos direcionar a uma prática que visa combater os estigmas, estereótipos e rotulações e auxiliar as pessoas a explorarem/afirmarem suas subjetividades e construírem vidas dignas, a partir de práticas baseadas em evidências, esta ainda está longe de ser a realidade da atuação da psicologia em nosso país. Assim, meu convite hoje é que você celebre este dia lendo as referências abaixo listadas e pensando como estas podem informar a sua prática, a partir do ponto do tecido social em que você está inserido.
Referências:
American Psychological Association. [APA]. (2015). Guidelines for psychological practice with transgender and gender nonconforming people.
American Psychological Association. [APA]. (2011). Guidelines for Psychological Practice with Lesbian, Gay, and Bisexual Clients.
Conselho Federal de Psicologia. RESOLUÇÃO CFP N° 001/99 DE 22 DE MARÇO DE 1999 “Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual”.
Conselho Federal de Psicologia. RESOLUÇÃO Nº 1, DE 29 DE JANEIRO DE 2018 Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis.
Meyer, I. H. (2003). Prejudice, social stress, and mental health in lesbian, gay, and bisexual populations: Conceptual issues and research evidence. Psychological Bulletin, 129(5), 674-697. doi:10.1037/0033-2909.129.5.674